Clara apareceu de surpresa no meu consultório, com 26 semanas de gravidez calculadas por uma ecografia tardia, feita há quinze dias, ocasião em que ela se descobrira grávida. Vinha de uma cidade vizinha, distante quase uma hora daqui.
Clara é seu pseudônimo para mim: alta e magra, loira e de olhos verdes, com pequenas sardas simpáticas e sorriso tímido no rosto, essa moça parecia uma autêntica brasileira so sul.
Iniciou o pré-natal timidamente, sempre quietinha e introvertida, com poucas perguntas.
Não frequentou o GAPN, não contratou doula. Informou-se, no entanto, através da internet e das dicas do blog. Confirmou o desejo pelo parto natural, mas de forma discreta e sem alarde, e também sem muita confiança (ao que me pareceu).
Desde o começo eu lhe dizia para ignorar a DPP, que, calculada por um ultrassom de segundo trimestre tardio, não era confiável. Minhas palavras exatas eram "só saberemos o momento certo do nascimento no trabalho de parto", que eu repetia em todos os nossos encontros. Participavam da consulta o companheiro, a mãe e às vezes uma cunhada, todos muito quietos e sorridentes.
O tempo passou, e a gestação chegou a 41 semanas. Fizemos nova ecografia, que mostrava um líquido amniótico discretamente reduzido, mas uma bebê ativa e bem nutrida, com fluxo de sangue placentário adequado. Essa consulta foi com o Rogério, e ele tranquilizou a todos e sugeriu o mesmo que eu: esperar o trabalho de parto espontâneo, a data por ecografia era altamente questionável.
Um dia antes de seu retorno comigo, na 42ª semana, recebi um telefonema à tarde no consultório de uma moça que se identificou como irmã da gestante, e o diálogo foi mais ou menos assim:
- Dra Carla, eu sou a irmã da Clara, e estou ligando porque ela acha melhor agendar a cesariana.
????????????????????? Fiquei sem palavras. Lógico que "eu sem palavras" é algo que dificilmente se prolongaria. Disparei a falar, e fui muito dura mesmo com a moça. Disse que nunca resolveria algo tão sério ao telefone, e menos ainda com outra pessoa que não a própria gestante.
- Pois é, mas ela está preocupada, já são 42 semanas, ela tem medo que aconteça alguma coisa com a bebê, e nós sabemos que a senhora é contra a cesariana.
_??????????????????? Como assim contra a cesariana? E a relação de confiança estabelecida no pré-natal?
Acabei ficando tão irritada, que sugeri que eles procurassem uma segunda opinião.
Estou cansada de ter que brigar para defender o que acredito. Sei que deveria ter respondido de outra forma, ter procurado mais acalmá-los do que mandá-los embora....mas ando tão cansada de mulheres que não querem parir....porque, a essa altura, eu cheguei a essa conclusão: Clara não queria parir.
Mas no dia seguinte ela compareceu à consulta, obedientemente. Disse que não queria a cesariana, que poderia esperar. Mas que tinha medo, tinha lido na internet sobre gestação prolongada, risco de mecônio e risco de aspiração de mecônio.
Acabamos chegando a um consenso, a da indução farmacológica com ocitocina sintética no dia seguinte. Antes disso, propus um toque vaginal para descolamento de membranas.
O descolamento artificial das membranas é uma forma de indução de parto, menos agressiva que o uso de ocitocina ou prostaglandina (opções medicamentosas). Naquele momento me pareceu o mais acertado a fazer.
Hoje Clara chegou à maternidade em trabalho de parto espontâneo. A indução com o descolamento fora o suficiente para desencadear um trabalho de parto sem uso de drogas.
Como toda mulher sem doula e sem GAPN, Clara internou-se precocemente, e portanto passou o dia na maternidade.
Seu processo foi lento, mas muito enriquecedor. Teve como auxiliar a enfermeira/doula Carla, que se virou em quatro para atender à parturiente e a todas as mulheres internadas no setor da UNIMED.
Inicialmente insegura e muito queixosa, Clara recebeu da Carla a tranquilidade e o apoio de que precisava, aprendeu a respirar lentamente e a relaxar o quadril nas contrações.
Encontrei-a à tarde na banheira, em plena partolândia.
Ah, partolândia. Ah, como é bom olhar para a parturiente e vê-la naquele transe que me dá a certeza de que ela vai parir. Aquele olhar esgazeado, perdido, sem foco, olhar para si mesma, para suas forças e seu lado mais íntimo e mais privativo. Balançando o corpo lentamente, relaxando de olhos fechados e reclamando um pouco, lá estava ela, ao fim de sua jornada.
Nos momentos finais ela foi para a banqueta, o companheiro atrás apoiando suas costas.
Com dilatação completa e apresentação baixa, quase se exteriorizando na vulva, sua bolsa se rompeu espontaneamente. Havia um pouco de mecônio, muito fluido, mas a frequência cardíaca da garotinha que nascia nunca se alterou. Tudo estava bem.
Algumas contrações, e Clara ficou muito brava:
- Ela não nasce!!
- Já vai nascer, está acabando.....
- Você só fala isso!!! Nunca acaba!!! Ela não vai sair, eu sei que ela não vai conseguir sair!!Eu quero cesárea, Carla, agora é sério....
Esse foi seu pedido de cesariana: na banqueta, com cabelinhos de sua filha aflorando na vulva. Pedido de momento de covardia de partolândia, aquele momento por que TODAS PASSAM. Mas o momento passava, e ela voltava a se concentrar em si mesma.
Assim foi que sua filha nasceu. Linda, forte, chorando a plenos pulmões e corando rapidamente. Rosa, rosa, cor-de-rosa. Foi para os seus braços imediatamente. Períneo íntegro.
(Além de mecônio, havia uma circular de cordão, como em cerca de 30% dos nascimentos. Que drama, não??)
Ninguém quis cortar o cordão: nem o pai da criança nem a mãe de Clara. Fiquei brandindo a tesoura, até que a própria arrancou a tesoura das minhas mãos com um "deixa que eu corto", e tratou de separar-se fisicamente para sempre de sua filha. Assim, leoa, como ficam essas gatinhas após parirem.
Um pouco antes do nascimento, o Pediatra escolhido pela família comunicou que não poderia estar presente ao parto. Carla enfermeira ligou no Centro Obstétrico, porque temos uma pediatra de plantão no hospital; a profissional mandou o recado que só receberia a criança na área restrita, não iria até o setor da UNIMED para recepção no quarto. Que coisa, não é? Chamamos então uma "pediatra do bem", acostumada com esses partos, que veio rapidamente e toda feliz. Foi ótima, respeitou o casal, não separou mãe e filha.
(A diferença de atender aos partos nos quartos é gritante. Nada de banhos precoces, nada de tirar a criança de perto da família. Tudo fisiológico. Na penumbra, nossa garotinha já abriu bem os olhinhos, explorando o mundo novo que a recebeu com tanto amor.)
Daquela moça tímida, quase sem voz, não restou mais nada. Clara é outra mulher. Viveu a partolândia, de onde mulheres nunca voltam iguais.
* Publicado originalmente no blog http://parirenatural.blogspot.com/
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