Uma homenagem à mulher-mãe!

"E num dia de bendita magia, numa explosão de luz e flor, num parto sadio e sem dor, é capaz, bem capaz, que uma mulher da minha terra consiga parir a paz. Benditas mulheres." Rose Busko

Carta à Obstetra, por Paula Freitas

Oi doutora, 

Hoje é dia do obstetra e acabo de ler uma carta de uma pessoa para seu médico, após ter passado por momentos ruins ao seu lado. Eu sabia que ia me emocionar. Sabia que muito ainda está entalado em minha garganta, da experiência que vivi sob seus cuidados em novembro, há quase cinco meses atrás. 

Não sei por que estou escrevendo. Não sei se vou te enviar esta carta. Só sei que me fará bem botar pra fora, cuspir coisas que engoli calada e que continuam me fazendo mal.

Bom, vamos lá. Difícil falar desse assunto. Complicado demais, até porque nem eu mesma consegui digerir ainda tudo que vivi nessa gravidez. Eu que sempre cuidei de tudo e de todos me vi precisando de um cuidado especial e já comecei a ser violentada no trabalho. Passei os primeiros meses de gestação tentando cuidar num ambiente adoecido. Tentando não faltar com as pessoas, as famílias, as crianças. Tentando que minha chefe compreendesse que nesse momento eu tinha limites e que não poderia atuar onde estava, um ambiente caótico e violento. Levei até onde pude e num dado momento rompi com essa opressão, me licenciei e decidi cuidar bem de mim e do bebê. 

Mas ainda tinha outra luta, a de conseguir ser acompanhada por um cuidador humano, que me olhasse como gente, que me acolhesse e que trouxesse meu filho ao mundo de uma forma tão bonita como ele foi imaginado, sonhado e esperado. 

Sempre fui uma pessoa responsável. Planejei a gravidez junto com meu marido. Fui ao médico antes, fiz exames. Comecei a reeducação alimentar para emagrecer um pouco. Queria recebê-lo bem, saudável. A primeira GO que me atendeu em Niterói ficou grávida, de gêmeos. Seria impossível me acompanhar no parto. Aliás, impossível não. Poderia desde que fizéssemos uma cesárea. A partir daí começou a minha saga. De consultório em consultório, em busca “daquele médico”. Não queria muito, não queria nada tão diferente. Não estava propondo parto domiciliar, só queria o parto normal. Normal mesmo. Não aquele atropelado. Cheguei a ouvir vários absurdos. “Faço o parto normal desde que ele dure no máximo ... horas”. Faço parto normal sim, mas com episiotomia, ocitocina, etc”. “Faço parto normal dirigido”. “Faço parto normal sim, mas pago por fora do plano de saúde”. Numa das consultas com uma GO bem simpática, presenciei uma cena horrorosa dela no telefone com a paciente, que estava aos prantos, desesperada do outro lado da linha. Ela – e sua equipe – tinham combinado de fazer o parto no Rio e na hora – bem na hora – que a paciente ligou informando que a bolsa rompeu, foi informada que teria que vir de Nova Iguaçu, atravessar a ponte Rio-Niterói para ter seu filho lá, porque era mais viável para a médica que, afinal de contas, não queria desmarcar o consultório. Enfim, uma série de falas, gestos, olhares nada acolhedores. Eu que cresci aprendendo a confiar em médico comecei a ficar com o pé atrás. Comecei a ficar cada vez mais crítica. Ouvia relatos de mulheres que no momento do parto se decepcionaram e não tiveram como voltar atrás. E eu não queria ser uma delas. 

Bom, voltando à sua atuação, doutora, não sei se você se lembra bem de mim. Aliás, muitas vezes você se confundia durante a consulta, não lembrava dos meus dados, anotou resultado de exame errado na minha ficha. Talvez já fosse um primeiro sinal que você não estava me enxergando direito. 

Cheguei ao seu consultório com 32 semanas de gestação, por indicação da minha doula. Ela me alertou que com você seria interessante continuar o acompanhamento do pré-natal, mas que não deveria contar com o parto normal, já que você vinha fazendo nos últimos anos mais cesáreas eletivas. Naquela semana tinha tido uma consulta com uma GO que me tratou muito mal. Estava preocupada, tensa, com a sensação que a gravidez avançava e eu não estava sendo bem acompanhada por um médico ainda. Ainda não tinha definido quem “faria meu parto”. Aí estava meu erro. Ainda não tinha consciência que o parto era MEU e que EU É QUE IRIA PARIR. QUE O MÉDICO IRIA ASSISTI-LO. 

Na primeira consulta minha pressão estava alta e você me acolheu. Chorei, desabafei e você me tranquilizou. Era tudo que eu precisava. Pensei ter encontrado a médica que procurava. Mas você foi bem crítica com relação aos meus exames. Cismou que um resultado de glicose após dextrosol um pouco alterado me diagnosticava com diabetes gestacional. Me orientou a repetir os exames até o fim da gravidez. Nenhum deles deu alterado. Frutosamina, Hemoglobina glicada, várias ultras, eco fetal e nenhuma alteração. Bem no finalzinho eu te perguntei: “Você ainda acredita no diagnóstico de diabetes" e você disse: “Sim, diabetes controlada”. 

Hoje, mais consciente e ao mostrar meus exames para outro médico, tenho certeza absoluta que não havia respaldo para esse diagnóstico. E fico imensamente triste, porque isso tudo só me gerou medo e insegurança. Fui me sentindo frágil, doente, num momento em que precisava estar forte, me preparando para a chegada do meu filho. E eu camuflava todos os sinais que tinha de que você não faria o que me disse (fazer o parto normal desde que estivesse tudo bem). Eu maquiava, distorcia, tentava enxergar o meu desejo e não a realidade que se apresentava. Achava que sua forma patológica de analisar meu quadro era cuidado excessivo. E fui me enchendo de esperança e a cada resultado dentro do normal eu e Daniel ganhávamos mais uma semana e outra e outra. E mesmo com o apoio do meu marido o medo continuava. Sempre que ia ao seu consultório, ouvia as conversas na sala de espera e tinha a sensação que meu lugar não era ali, mas  que não tinha para onde ir. O único profissional que poderia me atender de forma humanizada pelo plano não tinha mais vaga, que pena. 

Chegamos a 40 semanas de gestação. E dá-lhe consultas, exames, ultras... Mas estávamos bem, nos preparando para a chegada do nosso tão sonhado filho. Aula de ioga, relaxamento, massagem, tudo para diminuir a ansiedade e preparar corpo e mente para o nascimento do Daniel. 

No fundo, eu já tinha a sensação que não seria da maneira que sonhei. Já tinha conseguido sua “autorização” para a presença da minha doula, mas sabia que na hora teria que pedir – insistir – talvez implorar para não realizar intervenções desnecessárias, além do mais não sabia se você teria paciência para acompanhar meu trabalho de parto. Mas imaginava que conseguiria passar as primeiras horas com meu esposo e a doula, e que suas intervenções viriam nos momentos finais. Estava conformada com o “menos pior”, já que não teria o que penso ser o melhor pra mim e para meu filho. E busquei preparar para que tudo corresse bem. Escolhi a maternidade São Francisco por ter um quarto para parto humanizado. Desejava nem precisar ir para o centro cirúrgico. Fui no pediatra, conversamos sobre os primeiros cuidados com o bebê. Estava tudo “pronto”, cuidado na medida do possível. Mas eu sabia que estava em suas mãos e rezava para que cuidasse bem de nós. 

Nos últimos dias da gravidez, minha mãe e minha irmã estavam em casa. Acompanhamos com alegria as contrações de treinamento. E no domingo, por volta de 20h, a bolsa rompeu. Comemoramos numa mistura de felicidade e tensão. Era a hora. O primeiro grande sinal. Eu estava feliz. Mas também estava nervosa. Sabia que se te ligasse você me mandaria ir para a maternidade e não sabia o que faria comigo. 

É, exatamente isso, porque a gente fica nas mãos de vocês. Começou a minha angústia. Conversei com meu esposo e chorei muito. Sabia que tinha que tomar uma decisão importante. Ligar ou não pra você. Decidimos ligar. Afinal, você era a médica que me acompanhava, tinha que confiar. Esperei até às 23h pra te ligar, porque tinha esperança que o trabalho de parto engrenasse rápido, porque sabia que você não iria respeitar o tempo fisiológico do parto. Estava tendo as primeiras contrações mais fortes e o intervalos entre elas diminuindo. Você me mandou ir para a maternidade. Meu coração gelou. Começava ali minha maior angústia. Um sofrimento desnecessário, caso eu confiasse e me sentisse realmente acolhida. Meu medo nesse momento não era do parto, mas das suas decisões. E quanta angústia ao ouvir sua voz no telefone, me perguntando se eu já estava chegando na maternidade e dizendo que já estava abrindo minha ficha, para não perdermos tempo. Que merda! Você tinha pressa. 

Quando chegamos você estava com cara de brava e eu com medo. Agora escrevendo, percebo que essa dinâmica se repete em minha vida. Me sentir acuada, pressionada, intimidada. 

Entramos para a sala e você me examinou. Aos poucos, ainda saía líquido. Me lembro que você colocou a luva, fez o toque, cheirou e examinou o líquido. Não tinha mau cheiro, nem sinal de mecônio, tenho certeza, mas você nessa hora foi incisiva: “você está com bolsa rota, temos que operar, senão seu bebê corre risco”. Eu ainda perguntei se não dava pra esperar mais. Disse que já estava com contrações, mas você bateu o pé e usou o argumento que nunca falha diante de uma grávida prestes a parir seu primeiro filho e cheia de medos: “não podemos colocar o bebê em risco, essa semana mesmo teve uma que o bebê pegou infecção e está na UTI”. Pronto. Foi o suficiente para a “idiota aqui” esmorecer. 

O que fazer? Eu até sabia, mas não tinha coragem. Minha vontade era sair correndo dali. Ir para o Rio, parir meu filho numa maternidade pública, tentar o parto humanizado na emergência. Mas o medo foi maior. E se acontecesse algo com ele? Eu não iria me perdoar. 

Daí em diante me lembro só de flashes. Tudo passou muito rápido. Em alguns minutos eu estava como uma doente, de camisola hospitalar, sentada numa cadeira de rodas, indo para o centro cirúrgico. Eu tremia muito, dos pés à cabeça. Achei que era frio, mas agora vejo que era medo. Que horror! Prestes a receber meu primeiro filho e me sentindo como um animal acuado, que literalmente treme de medo. Procurei me conectar com Daniel, conversar mentalmente com ele, explicar o que iria acontecer e me desculpar, porque era o máximo que tinha conseguido até ali. Meu sofrimento foi amenizado quando soube que seu auxiliar seria o médico que tentei durante o pré-natal. Meu coração se acalmou. Teria mãos amorosas cuidando de nós, da mesma forma que sempre busquei cuidar das pessoas. 

Durante a cirurgia procurei relevar algumas coisas, porque só conseguia pensar no meu filho, em me manter calma para que ele chegasse bem. Mas não consigo esquecer de suas palavras frias e irônicas: “Olha você ficou cheia de estrias... depois pede pro seu marido pagar uma plástica!”. Não me conformei também quando você disse surpresa: “Nossa, você tem miomas!”. Como assim? Você sabia disso! Ou pelo menos deveria se lembrar! Numa das consultas cheguei a te perguntar porque não apareciam mais nas ultras e você me explicou o motivo. E na hora da cirurgia falou como se eu fosse irresponsável e não tivesse falado nada. Como assim? 

Também não engoli seus comentários com o médico auxiliar antes de entrar. Soube que ele perguntou o por que da cesárea e que você disse: “A estória não é tão bonita assim não! Ela é OBESA, HIPERTENSA E DIABÉTICA!”. Era assim que você me via. Aliás, você não me via e eu só fui perceber isso depois. Que pena. 

Depois de tudo, fiquei me perguntando várias vezes o porque. Imaginei que tivesse algum sentido. Talvez eu não devesse ter tentado o parto normal mesmo. Quem sabe teria acontecido algo ruim. Quem sabe você foi usada para “atrapalhar” algo que não acabaria bem. Não sei. Só sei que precisava desabafar, botar essa dor pra fora. E te dizer isso tudo me faz romper com algo que, vira e mexe, se repete em minha vida. Guardar mágoa, não expor quando alguém me machuca. Não quero mais isso. 

Você deve ter se perguntado porque não voltei para retirar os pontos. Aliás, deve ter tirado suas próprias conclusões. Deve ter falado de mim, me julgado e nem de longe conseguiu se colocar no meu lugar. Eu ainda estava com suas palavras irônicas ecoando em minha mente, estava tão fragilizada que me sentiria pior quando te ouvisse repetir que foi necessário, que o bebê correria risco. EU SABIA QUE NÃO ERA VERDADE. E não queria ser revitimizada. 

Na verdade talvez eu já soubesse que iria acabar numa cesárea desnecessária. Sinto por não ter tido força e coragem para sair fora. Mas já me perdoei por isso. Fiz o que dei conta. Fui até onde consegui. E vou me preparar para que o próximo filho nasça realmente de um parto. Vou escolher a dedo quem vai me acompanhar nesse momento mágico e feliz. Quero ter a oportunidade de viver as dores e a alegria de parir. 

Espero que essas palavras não tenham causado somente raiva ou revolta em você. Desejo profundamente que em algum momento elas toquem seu coração. Espero que você repense sua prática. Acredito que com tantos anos de experiência, você possa analisar estudos que comprovam a importância do nascimento saudável para mãe, bebê, família... Desejo que o movimento de humanização do parto e nascimento possa trazer luz para sua prática. Ainda há tempo de mudar. Ainda é possível receber melhor os novos seres que chegam ao mundo. 

Antes de me despedir, quero lhe agradecer pelo acolhimento. Apesar de tudo, foi bom poder contar com você nos momentos de tensão. Era bom saber que eu tinha pra quem ligar, a quem chamar. E é por isso que não quero guardar raiva de você, quero te perdoar. Não quero carregar mais comigo essa tensão que sinto quando falo seu nome. Fique em paz e que continuemos vivendo no amor de Deus. E que Ele possa clarear seu caminho e abençoar sua prática, para que ela se torne mais amorosa, acolhedora e humanizada. 

Paula Freitas – Volta Redonda – 12/04/13

2 comentários:

  1. Paula, apesar de todo sofrimento desnecessário que vc passou, agora vc e Daniel estão bem e junto de pessoas que te amam muito. O mais importante vc fez; foi perdoar. Agora é cuidar com muito amor do Daniel para seja pessoa tão boa quanto os pais e nós, os familiares e amigos, estamos a disposição para ajuda-los nesta tão gratificante tarefa. Bjos.

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